Vampiro atacando o pasto

Vai ter gente por aí que vai dizer que vampiro é coisa da Transilvânia. Também é, afinal, lá é a terra do Conde Drácula, o mais famoso vampiro da ficção, criado pelo escritor Bram Stoker e imortalizado pelo cinema. Mas não é só por lá que misteriosos seres alados sugam o sangue das criaturas vivas durante a noite. Quem frequenta o interior sabe muito bem disso. Só que, na roça, o vampiro gosta mesmo é de sangue do gado. Vez ou outra, aparece pela manhã uma das vacas com as duas pontadinhas no cangote, sinal incontestável de que o vampiro passou por ali durante a noite. Tem gente que até deixa resma de alho presa no curral ou no cabril para espantar os dentuços alados, mas a medida protetiva nem sempre é eficaz.

Foi exatamente o que aconteceu com o Firmino, o casêro da fazenda do dotô Afonso. Se alembra dele? Um rapaz mais novo, que tá sempre co’a garrafa da marvada a tira-colo. Aquilo ali é que nem carro véio: bebe, bebe, bebe e trabaia pôco. Mas o dotô Afonso, que quase nunca vem aqui, nem dá conta das trapaiada do Firmino. Pois ele outro dia contô que tava ino guardá o burro, dispois de vortá da cidade, quando viu a vacaiada toda agitada. Já era noite escura e tava só ele na fazenda. Como as vaca num parava de se mexe, ele decidiu ir até lá no pasto pra ver o que era. Nem desarriô o burrico, coitado, que ainda tava co’a charrete, vortando carregado com as compra que o Firmino tinha feito durante o dia.

Ele foi então chegando ali, meio atrapaiado com a garrafa de marvada numa mão e a corda do burrico na ôtra, foi ino, ino, ino inté que percebeu que tinha um bicho todo preto quase em cima dele. Ele oiô bem, até esfregô os oio pra entendê mió, e quando viu num pôde crê: tava diante dum vampiro… O bicho parecia um morcego, sabe?, mas tinha uns pé e umas mão de gente e era inorme… O coitado ficô sem reação, quase desmaiô… Quando vortô a si, oiô de novo e já num viu mais nada. Mas aí, no dia seguinte, ele encontrô uma das vaca, a Bolívia, toda amuada. Ela num queria nem pastá. Quando chegô perto dela pra vê é que percebeu que ela tava com dois furinho perto do pescoço, ainda com uns sujim de sangue. Coisa do vampiro…

O vampiro, no caso, é um morcego hematófago com dimensões humanas que passeia entre o gado, estourando a boiada no pasto e paralisando de medo o burrico. Na gravura, Felipe Abranches brinca com o tênue limite que separa a “realidade acontecida” da “realidade imaginada” com a ajuda de uns golinhos de cachaça.

A bebida, muito comum no interior mineiro, ajuda a espantar o frio nas noites de inverno, a solidão dos grotões e, claro, serve de combustível para a imaginação. Quando se junta ao breu noturno, tornam-se a combinação ideal para fazer com que pequenas coisas ganhem contornos sombrios e dimensões assustadoras, transformando um simples morcego em uma apavorante criatura das trevas. O resultado, como não poderia deixar de ser, é o surgimento de mais um “causo” ou de uma gravura, no caso.

Ficha técnica
Matriz em ferro de 40×25 cm
Impressão em papel Fabriano Rosaspina 220g/m² de 50×35 cm
Ago/2007