Rio das Carpideiras

Um hiato silencioso paira sobre as três carpideiras levadas pelo barqueiro à outra margem do rio. Enquanto o homem suspende o remo para contemplar algo fora da cena, o barco parece estacionar sobre as águas. A falta de movimento da embarcação soma-se à paralisia das três mulheres enlutadas, cuja feição distante parece não notar a repentina interrupção do percurso – muito menos se incomodar com o futuro atraso da travessia para o mundo dos mortos do falecido que as espera para ter a “alma encomendada”. Um observador mais atento pode inclusive perceber que delas, a mais jovem e única a trazer os cabelos descobertos, está tão absorta em outros pensamentos que, displicentemente, esboça um pequeno sorriso entre lábios. A expressão facial contrasta com a melancolia esperada de uma carpideira. Ao fundo e indiferentes à cena principal, outros três barqueiros seguem suas rotinas diárias de labuta, vivos e distantes da mórbida embarcação.

“Rio das Carpideiras” surge inspirada pelo imaginário ocidental construído por diversos artistas sobre as travessias de Carontes, o barqueiro do reino de Hades responsável por levar os falecidos para o mundo dos mortos. Entretanto, na recriação feita por Felipe Abranches da passagem para o reino dos mortos, os cenários e as personagens são retirados do imaginário popular e do cotidiano mineiro. As três barcaças da cena podem muito bem ser encontrados nos rios de Minas, assim como o próprio rio é uma combinação exacerbada entre nossa arquitetura colonial e nosso “rio da integração nacional”.

Os trabalhadores da morte

Na obra de Felipe Abranches, o barqueiro perde a relação direta com a morte e torna-se apenas mais um trabalhador, responsável por levar ao outro lado do rio as carpideiras. Essas sim, de uma maneira similar a Carontes, responsáveis por ajudar na transição entre o mundo terreno e o mundo dos mortos.

Figura popular no passado das Minas Gerais, as carpideiras foram, desde tempos antigos, mulheres contratadas pelos familiares dos falecidos para “chorar o morto”. Seus cânticos, suas rezas e, principalmente, suas lágrimas, acreditava-se, abrandavam a alma do defunto em sua passagem para o outro mundo. Entretanto, assim como Carontes, que só atravessava aqueles que tivessem uma moeda para lhe pagar, as carpideiras também tinham seu preço: cobravam roupas, alimentos e dinheiro em troca de encomendar a alma do defunto.

As carpideiras, assim como Carontes, representam um último elo entre o terreno e o divino. Essa tensão constante entre esses dois lados, ao mesmo tempo opostos e complementares, é a temática dominante de “Rio das Carpideiras”, que explora variadas maneiras de representar esses dois pólos.

As representações do terreno e do divino

Existem na arte diversas convenções que relacionam forma e significado, predeterminando algumas interpretações para as formas geométricas e números. De acordo com essas regras, o número um, assim como o círculo representam o cósmico e o divino, enquanto o número três representa o que está na terra, mas com propensão ao divino. Essa é a razão pela qual há uma sistemática repetição desses elementos na gravura.

São três carpideiras, três barcos e três arcos na ponte. Entretanto, cada um desses arcos, quando tomado junto ao seu reflexo, transforma-se em um círculo. Outro círculo pode ser encontrado na junção entre o arco central e o barco das carpideiras, imprimindo uma disputa constante entre o terreno e divino – a mesma disputa vivida pelos moribundos que ainda estão na terra, mas cuja alma busca o etéreo.

O círculo central tem ainda uma outra função: ele ajuda a congelar a dinâmica da composição, paralisando o olhar sobre esse breve momento de disputa entre o terreno e o divino e deixando a narrativa em suspensão.

Ficha técnica
Matriz em ferro de 50×24 cm
Impressão em papel Fabriano Rosaspina 220g/m² de 60x35cm
Mar/2008