Reportagem “Mitos da cultura interiorana”

Por Walter Sebastião

Quem vem apresentando ótimas gravuras, em espaços alternativos, é o belo-horizontino Felipe Abranches, de 27 anos, formado em Gravura, em 2007, pela Escola de Belas Artes da UFMG. É artista dono de imaginário singular: realista e metódica observação de cenas e mitos da cultura interiorana, materializada com expressivo e caprichoso esmero gráfico. No momento, uma antologia do que foi apresentado em mostras em Tiradentes e São João del Rei, com direito a três estudos, está em exposição no anexo da Biblioteca Pública Luiz de Beça. São 10 trabalhos, preciosos, na sua serena dedicação a evidenciar o cotidiano e temas transcendentes (a morte, o simbólico, os anjos), que existem incrustados no dia-a-dia.

O estranho título da exposição, Vois’cê que mi parece um passarim, conta Felipe Abranches, remete à observação, algo jocosa, de um negro, do interior, diante de gente vestida de anjos em procissão. Imagens deste ano, anotações para a série, em andamento, inspirada no livro O Triunfo Eucarístico, texto do século 18, voltado para a descrição de apoteótica festa religiosa ocorrida em Ouro Preto. “As festas religiosas do Barroco, com seus carros alegóricos, são uma espécie de origem do Carnaval”, conta. “Não é releitura do texto mas multiplicação de olhares sobre o fato que ele descreve”, completa, explicando que, para tanto, vale-se também de personagens fictícios, como anjinho que parece um capetinha.

Felipe Abranches explica que a série sobre o Triunfo Eucarístico está em curso “e ainda é hermética” para o público, mas não esconde encanto pela obra: “É texto de superlativos, rico de detalhes, que dá ao ocorrido escala de grandeza única e cuja leitura evoca muitas imagens”. O acesso ao texto veio por meio de amigo matemático, mas apaixonado por história. E o artista quer fazer da série divisor de águas em seu trabalho, realizando algo, explica, distinto de tudo que fez até agora. O primeiro passo foi abrir-se para o uso da cor, em pesquisa, até agora, marcada por requintados brancos, pretos e cinzas.

A dedicação à cultura interiorana, que já levou a série inspirada em imagens de artistas viajantes que cruzaram o Brasil no século 19, é proposital. “Voltei-me para o interior, para o delirante, buscando as origens das crenças e questionando imagens estabelecidas. A mim interessa o sincretismo da cultura greco-romana e afro-brasileira”, afirma, explicando que o deus Marte e Ogum são o mesmo personagem. “Mitologias, falando de deuses, falam, de fato, do ser humana tentando explicar a si próprio”, completa. A gravura existe na vida do artista desde antes dele entrar na escola. Fez xilo (matriz em madeira), queria estudar escultura, o professor Clébio Maduro apresentou a ele a gravura em metal e ele adorou – “e não parei mais”. Está mostrando duas litos (matriz em pedra). “O projeto é desafiar a gravura”, conta.

O que mais admira na gravura em metal? “É mais fácil que carregar que o papel. Não amassa, é resistente, pode tomar chuva, posso lixar e tem traço fino o suficiente para que possa fazer detalhes”, responde o artista. Chama a atenção a liberdade, sem preocupação com “estilo”, com que o artista manipula a técnica. Artistas que Felipe admira: Marcelo Grassmann, por criar simbologias, que, não sendo de uma cultura específica, comunicam com o público. E Goya, “em especial os monstros vindos da razão nublada”.

O TRIUNFO EUCARÍSTICO
Mostra de gravuras de Felipe Abranches, no anexo da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, Rua da Bahia, 1.889, 2º piso, Funcionários. Aberta de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h; sábados, das 8h às 13h. Entrada franca. Até o dia 22.