Lobisomem atacando o galinheiro

Galinha alvoraçada no meio da noite é mau sinal e todo mundo que tem um pezinho na roça sabe disso. É indício de que tem algum bicho rondando o galinheiro e perturbando o sono das coitadas. Pode ser mão-pelada, um mamífero pequeno e comum no interior mineiro, que sai na calada da noite para caçar e tem uma predileção por apavorar os galinheiros mais desprotegidos. Também pode ser algum teiú à espreita, o lagarto gigante que habita cerrados e florestas sulamericanos e que adora uma refeição com ovos e aves. Mas, o seu Zeca, sabe o seu Zeca? Aquele que mora ali naquele sítio da virada, logo depois do mata-burro? Pois então, o seu Zeca ôtro dia, naquela última lua cheia que teve, tava vortando pra casa depois de tomá umas pinga ali no armazém do Geraldinho. Quando ele chegô no terreiro da casa dele, viu que as galinha tava tudo espaiada, correndo alvoroçada pra tudo quanto é lado. Ele ficô logo incomodado co’aquilo e foi na gaveta da estante da sala pá mó de pegar o revólvi que ele guarda, um revólvi véio, era do avô dele, nem sei se aquilo ainda dá tiro. Ele foi, pegô o revólvi e vortô pra fora. Foi ali tateando no escuro, trombando nas galinha, alumiado só pela lua, custando pra firmá os óio quando, cê num vai acreditá que aconteceu… Ele viu um vurto, do tamanho de uma pessoa arta, até achô que era o Pedro, filho do Zé do Açôgue, mas quando ele conseguiu firmá os óio pra olhá bem, percebeu que aquilo não era gente não… Era um lobisômi! Todo coberto de pelo, parecia mais um cachorro, mas andava assim de pé feito a gente, tinha mãozinha e tudo…

Na gravura de Felipe Abranches, o lobisomem é um lobo-guará antropomorfizado. Tem cara de lobo, pelo de lobo, mas o corpo é humano. Ele tem altura de homem e anda sobre as duas patas. O galinheiro desenhado faz parte das lembranças da infância do próprio Felipe: foi feito com base em uma foto dele quando pequeno, na qual, no meio da cena (no mesmo lugar onde encontra-se o lobisomem), ele tentava alcançar as galinhas da fazenda do avô – e elas, assustadas, corriam desordenadamente pelo terreiro. A noite de lua de cheia completa o cenário, iluminando a cena e revelando, de um lado, um monstro nem tão assustador e, do outro, o dono das galinhas, com um olhar ressabiado, sem saber se o que vê é real ou é fruto da imaginação tomada pelo sono e pelos sonhos (ou seriam pesadelos?).

A inspiração para criar a gravura veio depois da leitura do clássico da literatura brasileira “O Coronel e o Lobisomem”, de José Cândido de Carvalho. Na obra, o lobisomem é uma metonímia para a luta entre o primitivo e o moderno e entre o mágico e o racional, embate este que surge com a expansão das urbes sobre a até então agrária sociedade brasileira.

No registro inventado por Felipe Abranches, o lobisomem dá materialidade e realidade a uma cena que já foi diversas narrada pelos grotões do País, conferindo fama de mentiroso para muito narrador que afirmou, “por Nossa Senhora”, ter visto lobisomem. Na gravura, não importa se lobisomem existe ou se é invenção, a ideia é mesmo a do exagero, do lúdico, da extrapolação do real e, principalmente, da preservação de uma memória afetiva presente em cada um dos “causos” que persistem à modernização da sociedade.

Ficha técnica
Matriz em ferro de 40×25 cm
Impressão em papel Fabriano Rosaspina 220g/m² de 50×35 cm
Ago/2007