Diabo na enchente das goiabas

Quem tem um pezinho no interior sabe bem: uma vez por ano, no 19 de março, dia de São José, vem uma chuva forte que lava tudo e marca o início do período mais frio e seco do ano. É a “enchente das goiabas”, que recebe esse nome porque a água é tanta que leva junto as últimas goiabas que ainda estão no pé.

O que nem todo mundo sabe, é que numa enchente das goiabas lá prus fim da década de 70, o diabo apareceu pro tio Zito. É, menino, isso mesmo que cê tá ouvindo: o coisa-ruim, aquele que não devemo nem dizê o nome, apareceu assim, inteirinho pra ele. Acontece que o tio Zito tava já enfezado com o fedor de goiaba podre no quintal depois da enchente. Choveu tanto, mas tanto no dia de São José, que o terreiro dele ficô apinhado de goiaba. Ninguém nunca tinha visto nem tanta água nem tanta goiaba podre de uma só vez. Pois então, ele ficô tão enfezado que decidiu tirá o pé de goiaba do quintal, pra mó de isso num acontecê mais nunca. Pegô o machado e foi. Era sábado à tarde e ele queria aproveitá a estiagem pra fazê o serviço. Mas parece que ele num tava mesmo com sorte naquela semana.

Foi dar o primeiro golpe na goiabeira e a lâmina caiu no chão, rente aos pé dele. Tio Zito, que tem uma boca suja daquelas, sortô logo um “Ê, diabo!”, xingando o machado. Foi quando aconteceu: parece que o diabo já tava ali por perto e escutô o chamamento do tio Zito, que na verdade nem era chamamento nem nada, mas o capetão achô que era. Quando viu o coisa-ruim tomá forma bem na sua frente, tio Zito se desesperô. O diabão olhô pra ele e foi logo perguntando: “Foste tu que me chamaste?”, e o tio Zito, co’as perna tremênu que nem vara verde, tentô arrumá uma desculpa esfarrapada qualqué pra mandá logo o diabo embora. Disse que era engano, que ele tinha dito “quiabo”, não “diabo”… Mas o capetão foi ficando nervoso, nervoso, até que se enfezô de vez e deu um tapão bem na cara do tio Zito e, depois disso, do mesmo jeito que tinha aparecido do nada, desapareceu, deixando só uma nuvem cor de burro-fugido com cheiro de enxofre. Se cê fô lá na casa do Zito cê vai vê a goiabeira ainda lá, de pé, e o cheiro ruim espalhado por toda parte.

À primeira vista, pode haver quem não identifique o diabo na gravura. A representação escolhida por Felipe Abranches foge do convencional homem avermelhado com chifres: O diabo da enchente das goiabas apresenta corpo humano, a cabeça é um crânio de cabrito montanhês e, à cintura, o órgão sexual dá lugar a um cardume de peixes elétricos.

Enquanto o crânio do animal faz referência a uma das primeiras gravuras de Felipe Abranches (a gravura em metal “Baco”), a narrativa escolhida para o desenho guarda relação com a memória afetiva de Abranches, que cresceu ouvindo de um dos tios o “causo” do diabo da enchente das goiabas. Para dar materialidade ao inusitado (e improvável) encontro entre o tio e o “coisa-ruim”, o artista escolheu trabalhar com elementos igualmente imprevisíveis: desde a opção por fazer um diabo fugindo da iconografia cristã, ao uso dos peixes elétricos, assumindo a forma fálica.

Além de reforçar o inusitado, a composição flerta com a ideia da dissimulação e dos truques, pelos quais o diabo costuma ser famoso. Em uma narrativa quase à parte da história principal do aparecimento do diabo, sabiás investem contra a cascavel que tenta atacar o ninho desses passarinhos, criando a mesma atmosfera de tensão e de risco à vida presente nas outras gravuras da série “Demandas da minha fazenda”. Dessa vez, porém, a tensão não é causada por algo sobrenatural – como o lobisomem que ataca o galinheiro ou o vampiro que ataca o pasto –, mas sim por algo corriqueiro na natureza: a luta entre espécies pela sobrevivência, uma competição na qual não há bons ou maus, nem certos ou errados. A cascavel pode, à primeira instância, sugerir o mau devido à sua semelhança à serpente bíblica, todavia, na gravura de Abranches a cobra é apenas uma cobra: ela nada tem a ver com a representação simbólica do mau – esta é feita pelo diabo, em corpo presente e ocupando o primeiro plano da obra.

A ideia do artista ao estabelecer esse jogo é dar ênfase ao fato de que estamos circundados por dissimulações e ideias preconcebidas durante todo o percurso de nossas vidas. A cobra enrolada na goiabeira nada tem a ver com a serpente na macieira, embora ela esteja ali claramente para enganar o espectador, da mesma maneira como o próprio artista foi enganado durante toda sua infância pelo tio com o “causo” do diabo da enchente das goiabas…