Cerrado

Peça central do tríptico, “Cerrado” é uma narrativa simbólica na qual Abranches celebra as viagens que marcaram sua vida durante certo período de tempo, e que serviram de referência para a produção desta obra – na qual se encontram diversas paisagens e situações vivenciadas pelo artista em suas jornadas pelo interior mineiro.

Não por menos, Abranches retrata a si próprio no centro da gravura, reforçando o caráter singular que essas viagens representaram para ele próprio: elas foram momentos de entrega pessoal, durante os quais a estrada e seus personagens e paisagens foram seus principais companheiros.

Composicionalmente, a leitura da cena começa à esquerda, pelo tronco da árvore que aparece em primeiro plano. A partir dele, nosso olhar caminha até o fim da raiz, e, só então, sobe para encontrar as três figuras centrais e, depois, afastar-se até alcançar o caboclo ao fundo.

Abranches usa seu autorretrato como o eixo divisor não apenas para a narrativa, mas também para marcar a separação entre os aspectos terrenos/carnais e espirituais de suas viagens.

A tensão entre essas duas partes é uma das características fundamentais do tríptico: de um lado há o índio e as árvores a remeter aos aspectos espirituais, enquanto, de outro, o lobo-guará, a raiz e a mulher fazem alusão ao terreno/carnal.

Essa separação, que se inicia no quadro central, se estende por toda a obra, com as demais cenas complementando a narrativa central.

Simbólicos

A simbiose entre a representação do artista e o lobo-guará – que em alguns momentos parecem ocupar quase o mesmo lugar no espaço – é uma das maneiras encontradas por Abranches para tentar traçar um elo psicológico entre ele e os caminhos que percorreu.

A figura do lobo parece passar por dentro do corpo de Abranches, ocupando um espaço estranho dentro da gravura. Isso ocorre porque, na verdade, a identificação entre o artista e o animal vai além da questão corpórea. Não é o físico, mas sim o psicológico o que os une. Quando Abranches escolhe um lobo-guará para ocupar a gravura central, ele o faz não apenas pela presença desse animal na fauna local, mas também por reconhecer no lobo características intrínsecas ao seu próprio temperamento: um animal arredio e desengonçado.

Fisicamente, a cor do lobo remete ainda ao minério de ferro das Minas Gerais, ambos revestidos por um vermelho cor de ferrugem, quase alaranjado. Essa referência à terra fez com que o artista adicionasse à narrativa uma raiz, que cruza o caminho das três figuras centrais, criando uma pequena historieta (e outro momento de tensão) que pode ser completada pelo espectador.

É possível ver que, enquanto o lobo se apoia sobre a raiz, Felipe permanece alheio ao obstáculo. Paira sobre a cena a sugestão de que, em um frame imediatamente posterior àquele paralisado na gravura, o artista irá tropeçar, aproximando-se ainda mais do chão – onde ele também tem seus pés metaforicamente cravados.

Completa o conjunto central do quadro uma figura feminina, que, na concepção do artista, remete ao sexo e ao carnal. A raiz da árvore não toca o pé da mulher, apenas o contorna graciosamente, criando um eixo descendente que quase entra na cena de “Tropeiragem”.

Ao fundo, um índio que apenas observa, remete à ancestralidade, na figura dos povos que primeiro ocuparam estas terras e que deram nome às plantas, aos animais, às serras e aos rios. Também representa uma ligação espiritual com os nossos antepassados, servindo de guia para esse contato entre vivos e mortos. Essa referência ao espírito ganhará mais força com a figura do carcará, em “Cachoeira”.